As pinturas murais da Igreja de Covas do Barroso

Autoria de Paula Virgínia de Azevedo Bessa, Assistente do Departamento de História da Universidade do Minho


COVAS DO BARROSO – Igreja de Santa Maria

DESIGNAÇÃO: Igreja de Santa Maria de Covas do Barroso
LOCALIZAÇÃO: Covas do Barroso, Vila Real.
LOCALIZAÇÃO ACTUAL DAS PINTURAS MURAIS: in situ.
LOCALIZAÇÃO DAS PINTURAS NO EDIFÍCIO: capela-mor, nave e arcossólio de intenção funerária.

ENQUADRAMENTO INSTITUCIONAL:
Segundo o Livro de Registos de títulos do tempo do arcebispo D. Jorge da Costa (1489) era seu abade Joham Aº: “Item. Mostrou confirmaçom da vigairaria sem capelanja da deta igreja de Santa Maria de Couas da terra de Barroso com suas capelas per Joham Brás vigairo de Bragaa aa presentaçom de Joham Aº abade da deta egreia dada em Bragaa (…), xiiij de nouembro,1481” [Acrescento, noutra letra: “Jurou que assi era custume de seer capellam porque assi dizia na confirmaçom que fizesse”] (ADB, RG, Lº 321, fol. 78 vº).
Durante o arcebispado de D. Diogo de Sousa esta igreja paroquial era da apresentação do duque de Bragança e era seu capelão Dioguo Afomso: “(…) a xxiiijº de Março de mjll b xxbiij [1528] confirmou a capelanya perptua de Samta Maria de Couas e suas anexas da terra de barroso (…) ao clerigo de missa a apsentaçam do senhor duque padroeiro da dita que pera a aquelle selaryo e spemdio que suya dser alvaro fernandez per cujo falesimento vagou (…)” (ADB, RG, Lº 332, fol. 310 vº).

As pinturas da parede fundeira da capela-mor desta igreja devem ser posteriores a 1528 e as mais antigas que se conservam na nave devem ser do último quartel do século XV. No entanto fica claro que, em 1528, o padroado era do duque de Bragança, tendo sido, muito provavelmente, o clérigo anterior a esta data, Álvaro Fernandes, também apresentado pelo duque.
Em 1537, durante o arcebispado do Infante D. Henrique ainda era Dioguo Afomso o capelão de Santa Maria de Covas: “(...)Item. Mostrou titolo pello arcebispo dom Diogo de Sousa per que lhe confirmou a capelania perpetua da igreja de Samta Maria de Couas com suas enexas aa presemtaçam do duque de Bragança verdadeiro padroeyro dada aos xxiiij de Março de mil vºs vimte e oyto.” (ADB, RG, Lº 323, fol. 23).

Apresentamos, assim, um quadro-resumo dos abades e capelães que é possível conhecer para esta época e para esta igreja:





CAPELA-MOR

CAMADA 1:
LOCALIZAÇÃO: na parede testeira e no tardoz do arco triunfal; são ainda visíveis partes do rodapé na parede lateral do lado do Evangelho.
ESTADO DE CONSERVAÇÃO: razoável, ainda que com grande quantidade de deposição de sais.
RESTAUROS: não houve.
TÉCNICA: fresco com acabamentos a seco.
PALETA CROMÁTICA: variada: negro, vermelho, ocres, azul.
RELAÇÃO COM O ESPAÇO ARQUITECTÓNICO: a pintura devia desenvolver-se desde o nível do pavimento ao da abóbada. Na parede fundeira, uma vez que se pretendeu figurar uma grande variedade de temas, a pintura está organizada em quatro registos com um tema no registo inferior e no do topo e dois temas nos registos intermédios.
PROGRAMAS E TEMAS:
Parede testeira:
Registo inferior: Apóstolos (parte de um Pentecostes?);
Registo médio: S. João Baptista e Santo (com atributos semelhantes – contas de rezar, bordão e nau - aos do santo identificado por legenda como Santo Amaro na capela de Santa Maria Madalena de Santa Valha);
Registo alto: Natividade e Ressurreição de Cristo;
Topo: Assunção de Nossa Senhora;
ICONOGRAFIA: Quais terão sido as motivações deste programa? Os Apóstolos do registo baixo talvez fossem parte de um Pentecostes, não se tendo conservado a pintura da zona central. No registo médio, os dois santos eram talvez da devoção do encomendador. No registo alto figuram-se a Natividade e a Ressurreição, assinalando-se o início da vida e a vitória sobre a morte de Jesus. No topo, figura-se um tema maior da devoção mariana – e esta igreja era da invocação de Santa Maria -, a Assunção. A Assunção da Virgem não é narrada nos Evangelhos mas sim nos evangelhos apócrifos assuncionistas. Foi popularizada não só por Gregório de Tours, no séc. VI, mas também pela Legenda Aurea, no séc. XIII8.
A Assunção de Covas do Barroso é uma Assumptio corporis: a Virgem, com os pés sobre uma lua em quarto crescente, é elevada ao céu por anjos, acompanhada por anjos músicos.
Este tema da Assunção figurado em Covas do Barroso testemunha uma faceta do culto mariano que se foi desenvolvendo muito antes de se constituir como dogma. Na verdade, este tema aparece figurado no Ocidente pelo menos desde o século XIII e, no entanto, só foi constituído como dogma pelo papa Pio XII no Ano Santo de 19509. No entanto convirá recordar que em 1497, esta festa, celebrada a 15 de Agosto, como ainda hoje, era considerada de jejum e guarda na diocese do Porto10. Também na diocese da Guarda, em 1500, se estabelece esta festa como sendo de jejum e guarda11. De mais importância no que se refere a Covas do Barroso, cerca de 1506, na arquidiocese de Braga, à semelhança do que havia sido estipulado para o Porto, esta festa é considerada de guarda e jejum12.

CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS:
1.TRATAMENTO DE FIGURAS:
O desenho é cuidadoso no tratamento dos rostos mas menos eficiente no tratamento dos corpos. Cuidam-se efeitos expressivos quer através do desenho quer na concepção das composições. Manifesta-se vontade acentuada de indicar o volume quer pelo desenho quer pelo claro-escuro.
2.TRATAMENTO DE FUNDOS:
O tratamento dos fundos é geralmente sumário, apenas indicando um nível de pavimento. No entanto, no Santo do registo médio, na Natividade, na Ressurreição e na Assunção detalham-se as indicações de enquadramento, cujas características plásticas são difíceis de avaliar no estado em que se encontram as pinturas.
3.BARRAS DE ENQUADRAMENTO: as barras usadas no enquadramento dos temas
referidos são lisas.
4.PADRÕES DECORATIVOS: no que é visível da pintura ao nível do rodapé na parede lateral do lado do Evangelho, assim como no tardoz do arco triunfal, neste caso, desde o nível do pavimento até ao da abóbada, usa-se o motivo dos paralelepípedos perspectivados.
5.HERÁLDICA: não é visível.
6.LEGENDAS: não são visíveis.
RELAÇÕES COM OUTRAS PINTURAS MURAIS: desconhecidas.
RELAÇÕES COM GRAVURAS, PINTURA, ETC.: desconhecidas.
ARTISTA/OFICINA: desconhecido.
ENCOMENDADOR (EXPRESSO OU PROVÁVEL): hipótese, dada a localização do programa e o facto de não se ter figurado o brasão do padroeiro: o abade de Santa Maria de Covas do Barroso.
CRONOLOGIA: hipótese, com base em critérios estilísticos: nos anjos que acompanham a Assunção manifesta-se um gosto gótico, estimando complicadas dobras nas vestes e o uso de fitas enroladas; nas restantes pinturas manifesta-se, por outro lado, uma linguagem artística que enfatiza o tratamento dos volumes e procura efeitos expressivos quer no tratamento dos rostos e dos corpos, quer na forma como se articulam as composições. O estado de conservação das pinturas não permite boa visibilidade dos detalhes de vestuário, no entanto, o facto de, na Natividade, a Virgem ter o manto colocado sobre um ombro, deixando a descoberto o outro, maneirismo que também ocorre nas pinturas de Santo Isidoro de Canaveses de 1536, talvez possa indicar uma cronologia para este programa da capela-mor de Santa Maria de Covas do Barroso de cerca dos anos trinta de Quinhentos.

CAMADA 2:
Trata-se de interessante programa de pintura mural datado de 1721, conservando-se pintura figurativa nas paredes laterais (Epifania, Menino Jesus entre os Doutores, milagre de reconhecimento da presença real de Cristo na hóstia consagrada, acólito com círio e o letreiro “Tantum ergum sacramentum”, Adoração dos Pastores, Circuncisão, Aparição da Virgem a S. Domingos, entregando-lhe um rosário, acólito com círio e o letreiro “Tantum ergum sacramentum”), sendo estes temas enquadrados por barras com rinceaux e usando-se um rodapé com putti segurando grinaldas), na abóbada (Árvore de Jessé, Nascimento da Virgem, Assunção, Coroação da Virgem e, ainda, pintura decorativa nas nervuras da abóbada e nas mísulas em que estas se apoiam, assim como embrechados fingidos nas jambas do arco triunfal e nas ombreiras dos janelões. Por se tratar de programa fora do âmbito cronológico deste estudo, não o comentaremos mais longamente.


NAVE:

CAMADA 1:
LOCALIZAÇÃO: paredes laterais da nave lado do Evangelho e do lado da Epístola.
ESTADO DE CONSERVAÇÃO: grande perda cromática, havendo lacunas nos rebocos e grande quantidade de deposição de sais, tudo dificultando uma boa leitura destas pinturas.
RESTAUROS: não houve.
TÉCNICA: fresco com acabamentos a seco.
PALETA CROMÁTICA: variada: negro, ocres, vermelho, azul.
RELAÇÃO COM O ESPAÇO ARQUITECTÓNICO: estes murais ocupam parte das paredes laterais da nave, na zona adjacente ao arco triunfal. Junto desse arco, há pinturas com o topo em quarto de círculo, talvez para simularem arcadas semelhantes às do arco triunfal original.
PROGRAMAS E TEMAS: não é possível interpretar com segurança os programas temáticos, dada a enorme quantidade de deposição de sais. Do lado da Epístola, conserva-se um Santo Bispo (com báculo e a mitra) que não podemos identificar mais precisamente e o anjo da Anunciação. Do lado do Evangelho, figuram-se uma santa e um santo com bordão, ambos com nimbos. O programa incluía várias outras figurações apenas parcialmente visíveis, uma vez que sobre elas se executou novo programa de pintura mural do primeiro quartel do século XVIII.
CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS:
1.TRATAMENTO DE FIGURAS: o anjo da Anunciação evidencia bom desenho e modelação. A cena tem um enquadramento arquitectónico, com coluna cuja base tem secção poligonal. No pavimento de ladrilhos negros e brancos tenta-se um tratamento em perspectiva.
Não é possível analisar estes aspectos em relação às restantes pinturas do programa.
3.BARRAS DE ENQUADRAMENTO:
1) com enrolamentos ao modo dos usados pela oficina que laborou em Valadares;
2) com motivo em espinha.
4.PADRÕES DECORATIVOS: recorre-se abundantemente a um padrão de motivo floral com muitas pétalas, pontilhado no interior, e rodeado, igualmente, por pontilhado. Este motivo tanto é usado em extensões de pintura de carácter meramente decorativo como nos fundos de enquadramento da pintura figurativa. Ocorre sistematicamente nas pinturas realizadas pela oficina que executou o programa da capela-mor de Valadares.
5.HERÁLDICA: não é visível.
6.LEGENDAS: não são visíveis.
RELAÇÕES COM OUTRAS PINTURAS MURAIS: o motivo de enrolamentos e o motivo floral já referidos são característicos da oficina de Valadares.
RELAÇÕES COM GRAVURAS, PINTURA, ETC.: desconhecidas.
ARTISTA/OFICINA: hipótese: oficina de Valadares.
ENCOMENDADOR (EXPRESSO OU PROVÁVEL): hipótese: nesta localização, os paroquianos.
CRONOLOGIA: hipótese, dadas as semelhanças já apontadas entre estas pinturas e as da oficina de Valadares: último quartel do século XV. É possível que estas pinturas sejam mais tardias do que as de Valadares, de Gatão ou da nave de Vila Marim I, uma vez que na Anunciação de Covas do Barroso a tentativa de tratar em perspectiva o pavimento, a coluna usada no enquadramento arquitectónico e o próprio desenho e modelação do anjo parecem ser indicativos de algumas mudanças no gosto e, consequentemente, no modus faciendi da oficina.

CAMADA 2 (?):
LOCALIZAÇÃO: arcossólio ambientando túmulo acompanhado por inscrição epigráfica:“Aqui:jaz:afomse:anes:bar/rosso:oqual:foy:muito:hõrrado/escudeiro:do:duq[ue]:de:b[r]agãca:fi/delrey de jon finouse na e[ra] do s[enh]or de I iiij:/IX ano”.
ESTADO DE CONSERVAÇÃO: a necessitar de restauro; deve haver pintura no intradorso do arco que se encontra repintada. Houve aqui mais do que uma intervenção de pintura, o que é visível junto da arca tumular.
RESTAUROS: não houve.
TÉCNICA: fresco com retoques a seco.
PALETA CROMÁTICA: negro, ocres, vermelho, azul.
RELAÇÃO COM O ESPAÇO ARQUITECTÓNICO: pintura mural ambientando inscrição epigráfica obituária num arcossólio de intenção funerária. O espaço disponível para a realização da pintura mural era muito limitado dadas as grandes dimensões da inscrição epigráfica, exactamente o ocupado pelo anjo.
PROGRAMAS E TEMAS: anjo fingindo segurar letreiro com inscrição epigráfica.
CARACTERÍSTICAS ESTILÍSTICAS:
1.TRATAMENTO DE FIGURAS: O rosto do anjo revela boas qualidades de desenho e de modelação pelo uso da cor. O tratamento do corpo do anjo é mais sumário.
3.BARRAS DE ENQUADRAMENTO: não são visíveis.
4.PADRÕES DECORATIVOS: não são visíveis.
5.HERÁLDICA: não existe.
6.LEGENDAS: não existem.
RELAÇÕES COM OUTRAS PINTURAS MURAIS: desconhecidas.
RELAÇÕES COM GRAVURAS, PINTURA, ETC.: desconhecidas.
ARTISTA/OFICINA: desconhecido.
ENCOMENDADOR (EXPRESSO OU PROVÁVEL): hipótese: descendente de Afonso Anes Barroso?
CRONOLOGIA: hipótese com base em critérios estilísticos: anos vinte/trinta do século XVI?
CAMADA 3: pinturas murais do séc. XVIII, da mesma oficina e da mesma cronologia das da capela-mor.

FONTES DOCUMENTAIS RELATIVAS À IGREJA:
1.IMPRESSAS: PIMENTA, Rodrigo, 1943 – Para a História da Arquidiocese de Braga, “Boletim de Trabalhos Históricos”, Guimarães, Arquivo Municipal de Guimarães, vol. VIII, nº3-4, p. 160.

2.INÉDITAS:
ADB, RG, Lº 321, fol. 78 vº.
ADB, RG, Lº 332, fol. 310 vº.
ADB, RG, Lº 323, fol. 23.

FONTES DOCUMENTAIS QUE REFEREM A PINTURA: não foram encontradas.

BIBLIOGRAFIA
AFONSO, Luís U., 2006 – A Pintura Mural Portuguesa entre o Gótico Internacional e o Fim do Renascimento: Formas, Significados, Funções, Tese de Doutoramento em
História (História da Arte), Lisboa, FLUL (policopiado), Anexo A, p. 242-246.
CAETANO, Joaquim Inácio, 2001 - O Marão e as Oficinas de Pintura Mural nos Séculos XV e XVI, Lisboa, Aparição, p. 22-25, 61-63.
RODRIGUES, Dalila, 1996 – A Pintura Mural Portuguesa na Região Norte. Exemplares dos Séculos XV e XVI in “A Colecção de Pintura do Museu de Alberto Sampaio. Séculos XVI-XVIII”, Lisboa, Instituto Português de Museus, p. 46.


Fonte:
Dissertação de Doutoramento em História – Área de Conhecimento de História de Arte

Bessa, Paula Virgínia de Azevedo (2007), Pintura Mural do Fim da Idade Média e do Início da Idade Moderna no Norte de Portugal, Anexo I, Braga, Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais.

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