A passagem de Frei Bartolomeu dos Mártires por Covas do Barroso

No livro Vida e Obra de Frei Bartolomeu dos Mártires, publicado em 1619, Frei Luís de Sousa (Manuel de Sousa Coutinho), descreve a passagem do arcebispo por terras de Barroso. Este relato mostra o quão inóspita era essa região naquela altura e o quanto estaria afastada da Cristandade. De facto, segundo reza a história, nunca antes um arcebispo aí se havia deslocado. (Ler mais sobre Frei Bartolomeu dos Mártires)
Nessa visita a esta parte intransitável da sua diocese - Braga - o ilustre, resoluto e erudito Arcebispo, que já havia defendido suas ideias no terceiro concílio de Trento, passou por Covas do Barroso: "Andava já o arcebispo no mais trabalhoso da serra; e passava um dia de Covas de Barroso pera onde chamam as Alturas ou o Salto; era o caminho da vereda muita estreita e costa arriba por ua serra íngreme e altíssima; e, de ua e outra banda, quase como talhada a pique e os vales tão fundos que metiam medo".

Carregando em Ler Mais poderá ler todo o relato

Da jornada que o arcebispo fez a visitar as terras de Barroso e de um caso milagroso que nela sucedeo

Tem o arcebispado de Braga muitas igrejas entre montanhas e serras fragosíssimas, como se pode entender do que atrás deixámos escrito; mas as que estão nas terras que chamam de Barroso tem um sítio [disposição] tão intratável de serras e penedias, quase sempre cobertas de neve, de picos que se vão às nuvens, de brenhas temerosas, de vales profundíssimos e passos perigosos que mais parecem morada de feras e selvagens que de homens capazes de razão e juízo. E, com tudo, são muitas as igrejas e muito em número o povo que se cria por aquelas matas, como formigas em formigueiros.
Por tal terra, como esta, determinou o arcebispo começar este ano a visitação de fora; que, como estava resoluto em andar [verificar] tudo pessoalmente, quis começar pelo mais dificultoso, julgando, antes tendo por certo, que haveria em tal posto grande necessidade de sua presença e tão espessas matas de ignorância como havia de arvoredo agreste; e não se enganava, como depois lhe mostrou a experiência.
Na hora que publicou [anunciou] a jornada não houve homem [com o valor de pronome indefinido] , dos que lhe podiam dar conselho, que lha não encontrasse com muitas razões, afirmando todos à uma que era género de tentar a Deos polos perigos certos a que se oferecia, a si e a todos os seus, em terra sempre invernosa, sempre cheia de neve, onde, até na força do Verão, havia tempestades de ventos e frios de cruelíssimo Inverno, riscos manifestos nas subidas das serras, serras tão íngremes que por muitas partes era forçado a ir a pé e talvez valer das mãos; maior risco nas descidas ou precipícios dos vales, que só de olhar pera o baixo se perdia a vista, tremiam as carnes, pasmava o ânimo e todo o encarecimento ficava curto falando de longe, pera o que havia de achar de perto
Sobre tudo, terra pobre, estéril, falta de mantimentos e muito mais de gasalhados, e em fim tal que nenhum prelado se atrevera a subir a ela, se não fora o grande São Giraldo (se se pode dar crédito a ua tradição que de tempos antiquíssimos anda naquela gente); e que, todavia, lhe custara a vida, acabando aí seus santos dias.
Não resiste a palma ao peso nem o diamante ao martelo, com mais fortaleza do que o arcebispo se armava de consciência contra todas as dificuldades; antes, quanto mais lhas exageravam, mais lhe acendiam o desejo de se ver já com elas a braços e como em desafio. E parecendo-lhe tudo pouco, a troco do merecimento que esperava ganhar com Deos em acudir a ovelhas tão desamparadas ou perdidas, mandou fazer prestes e nomeou o dia; e, em fim, partio, contra parecer de todos, alegremente.
Entrando pola terra começou a visitar polas fraldas dos montes e polos menos fragoso; e logo foi vendo que, se os que lhe estorvavam a ida falavam verdade no que diziam da calidade do sítio, muito mais ao certo lhe adivinhara seu coração o miserável estado que achava nas almas e consciências da pobre gente. Podemos bem dizer que não havia cristandade mais que no nome.
Correo a voz pola serra da vinda do arcebispo; abalou-se toda, foi o alvoroço e alegria sem medida. Juntavam-se a recebê-los polos caminhos com suas danças e folias rudes, que era o extremo da festa que podiam fazer. E, porque não fossem julgados por menos agrestes que os seus matos, nas cantigas que entoavam entre as voltas e saltos dos bailes, publicaram [mostraram] logo a quanto chegava o que sabiam do Céu e da Fé.
Ua dizia assi: Benta seja a Santa Trindade, irmã de Nossa Senhora. Este mote com glosas igualmente disparatadas repetiam muitas vezes, havendo que granjeavam com música santa um prelado que trazia fama de santo, e mostravam fineza de cristandade.
Que faria um prelado pio e zeloso neste passo? Finavam-se de riso todos os seus. Ele, qual o outro prudente e afligido, de quem o poeta canta:
Spem vultu simulat premit altum corde dolorem, fingia sembrante alegre porque convinha pera contentar e, assi, ganhar e remedia aquela rudeza; mas em seu coração chorava lágrimas de sangue vendo tanto desamparo no geral que não era menos nos particulares, como logo foi descobrindo.
Encontrou a um caminhando; chamou-o, perguntou-lhe quantos eram os mandamentos da lei de Deos; respondeo espivitadamente que eram dez; mandou-lhe que os declarasse, foi a resposta lavantar as mãos ambas e alargar os dedos, fazendo conta que em mostrar o número nos dez dedos, estava a ciência, e nenhua outra cousa soube o pobre dizer. Daqui se pode inferir qual estava tudo.
Começou o arcebispo a fazer seu ofício com grande piedade, ofício de verdadeiro pastor e pai. Como com mininos, assi estava com eles, assi lhes fazia doutrina, pregava, crismava, rogava, animava, e amimava mais do que repreendia, porque a gente de seu natural era inclinada ao bem; e, dos males que havia, os mais procediam de falta de mestres, poucos de malícia.
Bem sintia o enemigo infernal que lhe havia de dar muita perda esta jornada; e, por isso, trabalhou pola estorvar por meio de conselhos piedosos, como atrás contámos, que a cada canto sabe criar procuradores de sua maldade sem se dar a conhecer; e, raivoso de sucesso, determinou-se em guerra descoberta.
Andava já o arcebispo no mais trabalhoso da serra; e passava um dia de Covas de Barroso pera onde chamam as Alturas ou o Salto; era o caminho da vereda muita estreita e costa [encosta] arriba por ua serra íngreme e altíssima; e, de ua e outra banda, quase como talhada a pique e os vales tão fundos que metiam medo.
Caminhavam todos infiados um trás outro e com assaz pavor; e, como dizem, com o Credo na boca. Diante iam sete azêmalas de carga que levavam camas e mantimentos como se fazia que era o caminho por deserto.
Seguiam os criados e a família e os visitadores que ajudavam e sempre acompanhavam o arcebispo. Na retaguarda, um espaço atrás, ficava o arcebispo acompanhado somente de alguns a pé que nunca o largavam. Era este o costume do arcebispo. Como saía pela manhã da pousada, chamava um capelão com quem ia dizendo as Horas menores. Acabadas, despedia-o, dizendo:
-Agora, recolhâmo-nos com Deos.
E uas vezes deixava-se ficar detrás de todo, outras, se o tempo era áspero de ágoas ou frios, tomava a dianteira; e logo fazia o que dezia, servindo-lhe quantas cousas via polo caminho de ocasião pera acender e levantar o espírito em alta contemplação, em que de ordinário ia tão engolfado que pouco ou nada senti o trabalho, por larga que fosse a jornada. Com os braços cruzados e os olhos no Céo e as rédeas da mula lançadas em banda, caminhava muitas légoas sem dar fé de nada e às vezes por passos bem perigosos, «E guarda Deos com tanto cuidado os pés dos que trazem os olhos e o coração nele» (segundo o que tem prometido=, que afirmavam os que o serviam, espantados da postura e elevamento em que ia, que nunca viram cair nem menos tropeçar ou embicar a mula em que caminhava.
Na ordem que temos dito iam caminhando devagar e com trabalho; senão quando, ao tempo em que iam no mais alto da costa e quase vencendo o cabeço do monte, resvala ua das azêmalas de carga; e, em resvalando, tudo foi um, resvalar e ir em tombos pela costa abaixo. Ia nesta paragem o carreiro ou vereda que seguaim em voltas; vinham abaixo as outras azêmalas; dá sobre elas a que vinha em tombos; com o ímpeto que trazia derriba a primeira que encontrou, esta leva outra, e outra a que a seguia.
Assi se foram encontrando, empuxando e derribando até darem nos que vinham a cavalo que, sem remédio, não havia nenhum pera se desviarem, vieram quase todos a terra dando voltas sobre os penedos.
Foi grande a grita que o sobressalto e o perigo fez levantar a todos, chamando em altas vozes pelo nome de Jesu e de Nossa Senhora, dando-se por acabado e havendo que não parariam senão no fundo do vale, feitos em pedaços.
Foi tal o alarido que o arcebispo, inda que vinha muito atrás, o ouvio claramente, como crecia os eco entre os vales e concavidades da serra. Entendendo o que poderia ser, mandou aos de pé, que o acompanhavam, fossem correndo acudir, e ele apeou-se; e, derribando-se em terra, com as mãos e os olhos levantados ao Céo:
- Ah, Senhor! – disse – como permitis que sejam perturbados passos tanto do vosso serviçi como vós sabeis que estes são? Que dirão os que tanto fizeram polos estorvar ficando descansados e quietos em suas casas? E como se atreverão estes a passar adiante e acompanhar-me, se os não guardais?
Sem dizer mais, esteve em silêncio orando quase meia hora; e, tornando a cavalgar, disse alegremente ao que lhe tinha a mula na rédea: - Seja Deos para sempre louvado, ninguém perigou.
Entretanto os caídos se tinham levantado, e os de pé carregado de novo as azêmalas; e, juntos todos, acharam que, em tão evidente perigo, nenhum dano se recebera; e ainda que alguns deram muitas voltas sobre penedos agudos e troncos de árvores, onde só o peso e a força da queda era bastante pera matar, nem cavalgadura nem homem ficou ferido nem maltratado, exceito um só que estroncou um pé, cousa muito leve. Assi davam todos os caso por milagroso e tornaram a caminhar até ganharem o alto da serra e ficarem na estrada larga.
Como foram em cima, pararam, juntaram-se, davam-se os parabéns uns aos outros de se verem salvos, como se naquele dia naceram outra vez; e assi davam a Deos graças sem fim. Mas, entraram em cuidado do que seria de seu amo; e logo alguns tornaram polos mesmos passos em sua busca, porém logo ficaram desassombrados e pararam, que o viram de longe que vinha pouco a pouco subindo; e, quando chegou a eles, antes que ninguém falasse, levantou as mãos ao Céo; e, com rosto ledo e risonho, disse:
- Seja o Senhor louvado, que ninguém perigou.
Ficaram todos atónitos, olhando uns pera os outros, de ouvirem o que lhes dezia, sabendo certo que ele os não vira cair; e, quando bem lhe chegasse o rumor e a grita, era impossível ter notícia do sucesso e de como cada uma ficara, se não fosse por revelação.
E então assentavam que quem, estando ausente e longe do perigo, alcançara que o haviam passado sem dano, esse mesmo, por seus merecimentos, lhes negoceara com Deos o remédio e Livramento. E, cuidando despois devagar na calidade do sítio em que caíram, na violência da queda e no estado em que se viram, e trás isto nas palavras do arcebispo, achavam no caso dous milagres.
O primeiro escaparem todos são e salvos e sem lesão nenhua; o segundo have-lo adivinhado o arcebispo, estando longe, como se fora presente.
E, como se houvera neles curiosidade pêra fazerem autenticar ambas as maravilhas como houve juízo pêra as notarem, pudéramos dar este sucesso por tão milagroso como muitos dos que se contam nas canonizações dos grandes santos antigos; mas, ficando entre todos praticado e conhecido como tal, teveram cuidado de dissimular, respeito de seu amo, a quem sabiam que com nenhua cousa podiam desgostar tanto, segundo sua grande humildade, como falarem ou fazerem caso de matéria que redundasse em louvor ser.

Livro III, Cap. V

Frei Luís de Sousa [Manuel de Sousa Coutinho - 1555-1631], Vida de Frei Bartolomeo dos Mártires, Lisboa, 1619.

Extracto retirado
Ferreira, M. Ema Tarracha (1967), Textos Literários Séculos XVII e XVIII, Lisboa, Editorial Aster, pág. 465-470

Sem comentários: